A CIDADE DOS MORTOS

Izaias é natural de Macau-RN, mas viveu quase toda sua infância e adolescência nos municípios de Pedro Velho e Montanhas, ambos no Agreste Potiguar, ele é um autêntico norte-rio-grandense, como gosta de ser chamado. Também é o criador do personagem Chico Catatau, o cabra que apronta as mais loucas aventuras na Terra, no Céu, no Purgatório e no Inferno.
Nosso escritor é teólogo, poeta, professor, conferencista sobre literatura popular brasileira e editor-chefe da Isvá Editora, (Editora especializada em publicações de cordel e que vem revelando poetas cordelistas de todo país). Izaias é um dos poucos autores de literatura de cordel (de todos os tempos) que escreve textos para crianças. O diferencial dele para alguns cordelistas contemporâneos é que nosso autor cria suas próprias personagens e enredos, enquanto os outros fazem paráfrases dos clássicos infantis da literatura universal.
Ele é autor de vários cordéis humorísticos, entre eles Confusão que deu pra Frei Damião entrar no Céu, Férias que Bin Laden passou em Natal e Alien e predador versus LAMPIÂO. Esse caboclo é um grande defensor das tradições populares do Nordeste. Seu pai (in memoria) era um excelente contador de estórias de trancoso e Izaías herdou do progenitor o jeito engraçado de contar estórias que faz dele um ótimo gracejador. Ele participa com veemência de várias feiras e bienais de livro nesse país a fora. Izaias é um incansável divulgador da cultura nordestina.
Esse cabra que teve mil e uma profissões (desde vendedor de algodão doce, passando por livreiro até técnico de informática) já residiu em mais de dezoito lugares do RN, e até em delegacias (vixe maria!). ele deixou de ser nômade quando migrou para a cidade de Parnamirim, na Grande Natal, no ano de 1997, onde se esconde até os dias de hoje e por lá ele exerce suas atividades culturais e profissionais.

A CIDADE DOS MORTOS

Eu era um cabra farrista,
Gostava de animação;
Toda minha mocidade
Foi cheia de azaração.
Na longa estrada da vida
Eu vivi na contramão.

Nunca fui de ir à igreja,
Eu não praticava a fé;
Só me lembrava de Deus
Quando passava na Sé,
Isso quando estava indo
Ou vindo do cabaré.

Em espíritos de mortos
Que pudessem retornar
Ou assombrações noturnas
Vindas para atormentar,
Nessas coisas do além
Nunca fui de acreditar.

Porém a vida conduz
Nossos barcos pelos portos
Do medo e do sofrimento
E nesses caminhos tortos
O destino me enviou
Para a cidade dos mortos.

Apesar de ser farrista
Eu era trabalhador
E na arte do futebol
Um excelente jogador
Não profissionalmente,
Mas no esporte amador.

Eu tinha uma turminha
Que andava sempre comigo,
Dentre muitos: João Maria
Bentevi, Chicó e Bigo;
Homens muitos corajosos
Que não temiam perigo.

Como era nosso costume
Todo domingo jogar;
Certo dia fomos nós
Para um longínquo lugar,
Distante dezesseis léguas
Bater bola e biritar.

Saímos de madrugada,
Na maior escuridão,
Nós cinco com a galera
Em cima dum caminhão
Pra tal cidade almejada;
Na maior animação.

O carro estava lotado,
Era grande a macharada;
Eu com um litro de cana,
Tomei logo uma goipada
Pra espantar o frio grande
Das duas da madrugada.

Era uma rapaziada
Pulando no caminhão
Assobiando e gritando:
— Sobe Zé! Sobe Carlão.
— Se aquieta João Maria!
— Sobe Bigo e desce Dão.

Nesse tempo a maioria
Das estradas eram de barro.
Seu Tontonho: o motorista,
Nesse dia com seu carro,
Nos levou por um caminho
Meio esquisito e bizarro.

O velho na disparada
Dirigia consciente;
Enquanto a rapaziada
Tomava um forte aguardente,
Assobiando e cantando
Sob a luz do sol nascente.

No meio da brincadeira
Tive um mau pressentimento
Ouvindo o som de um pássaro
Tristonho todo momento;
Mesmo o caminhão estando
Em ligeiro movimento.

Com esse meu pensamento
Comecei me segurar,
Vendo a galera gritando,
Dizendo: — Vai capotar!
Quando então eu percebi
Que o carro ia virar.

Pois estourou um pneu
Bem numa curva fechada;
Seu Tontonho experiente
Tirou o carro da estrada,
Levando-o pra um barranco,
Fazendo brusca parada.

O caminhão esbarrou
Bem em cima duma cruz,
Dessas de beira de estrada,
E avistamos uns urubus
Que revoavam da mata
Por entre os raios de luz.

A mulher do motorista
Que com ele na boleia
Ia com seus três filhinhos:
Renato, Renan e Léia;
Desceu se tremendo toda
Sofrendo com dispneia.

Tontonho quase sem fala,
Disse: — Minha Lucimar
Foram esses urubus
Que nos deram esse azar;
Veja só os olhos deles
Querendo nos devorar.

— Deixe de tolice homem! —
Ela respondeu com fé.
Se eles nos deram azar,
Deus provou quem Ele é;
Pois freamos bem na cruz
De Jesus de Nazaré.

Todos, sentimos um mau-cheiro
De sangue e restos mortais.
Quando olhei para o madeiro
Quase que caí pra trás,
Avistando escrito nele:
Jesus Nazareno Braz.

O sangue (não sei de quê)
Espalhado pelo chão,
Cheio de urubus em volta
Parecia assombração;
Eu tive naquele instante
Outra triste sensação.

— Eu vou pegar o macaco —
O motorista exclamou.
Porém quando foi pegá-lo
Tontonho se irritou,
Por que a chave de roda
Em sua casa deixou.

De não sei onde surgiu
Um estranho rapazinho
Que saiu do matagal
Cruzando nosso caminho;
Um de nós assim falou:
— Por favor, meu amiguinho.

Onde podemos achar
Para nós a solução?
Pois furou agora mesmo
O pneu do caminhão
E infelizmente, colega,
Macaco não temos, não.

O tal rapaz era anão,
Meio que mal assombrado,
Co’uma roupa toda suja,
Fedorento e esfarrapado;
Com seu jeito de defunto
Tinha olhar desconfiado.

Ele só fez nos dizer,
Com meia voz feminina:
— Sigam-me até a cidade
Que lá tem uma oficina.
Logo começou cair
Uma fininha neblina.

Ele começou a andar
Sem dar mais explicação;
Se distanciando rápido
Da gente e do caminhão,
Descendo uma ladeira
De difícil encurvação.

Debaixo da chuva fina
Acompanhamos o rapaz,
Que ao meu ver ele era
Estranho e até demais;
Pois só falava conosco
Olhando sempre pra trás.

Eu, Bentevi e Chicó
Fomos com ele a cidade
Que ficava ali pertinho;
Esse sem cordialidade
Quando falava conosco
Falava com brevidade.

Querendo puxar conversa
Pra encurtar a caminhada,
Perguntei assim ao moço:
— Quem foi o tal camarada
Que se chamava Jesus
Que morreu lá na estrada?

Com olhar misterioso
O rapaz nos respondeu:
— Era um jovem surdo-mudo,
Faz tempo que aconteceu;
Um cavalo o atropelou
E o coitado ali morreu.

Dito isso se benzeu,
Bentevi o acompanhou
Fazendo o sinal da cruz
E Chicó se arrepiou;
Nisso, uma rasga-mortalha
Sobre nós sobrevoou.

Eu olhei pra cima e vi
Aquele feio animal
Agourando nossas vidas
Saindo do matagal;
Bentevi supersticioso
De novo fez o sinal.

Ao descermos a ladeira
Que era muito encurvada;
Do alto nós avistamos
A cidade enevoada,
Observando umas cruzes
Ás margens daquela estrada.

Eram cruzes de pessoas
Que morreram de acidentes
Só numa mão da estrada.
Ao lermos nas suas frentes
Os nomes dos falecidos
Ficamos meio dormentes.

O final deste e outros cordéis você encontra na Coletânea O BAÚ DO MEDO.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A LAGOA DO TERROR

O NOIVADO MACABRO

AS NOVAS PRESEPADAS DE JOÃO GRILO E CHICÓ